“O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar – Clarice Lispector”
Desde que li pela primeira vez, há mais de 10 anos, esta frase da Clarice passei a respeitar ainda mais o termo “Óbvio” e entender o seu poder. Por mais que, às vezes, a gente tente sempre enxergar complexidade, muitas coisas se entendem e se resolvem com um belo “feijão com arroz”.
Imagine a seguinte situação: Você joga futebol na posição de atacante e tem o perfil de só se movimentar dentro da área do adversário e no lado esquerdo. Não muda seu estilo de jogo, não sai da área para receber e trocar bola com os armadores e não volta para ajudar na marcação. Fica ali, na sua zona de conforto e experiência esperando a bola cair no seu pé bom. Isso sempre funcionou muito bem até agora nos times em que jogou em função do esquema tático que tinham. Contudo, agora o seu time mudou e, em um dos jogos mais importantes da sua vida neste novo contexto, em função deste estilo particular, a bola cai no seu pé bom apenas duas vezes em 90 minutos de jogo – e você perde as duas oportunidades na cara do gol. Estes dois erros custaram a derrota do time. Não preciso dizer os adjetivos que a torcida usará para lhe qualificar na sua saída de campo, certo?
Quando comecei minha carreira executiva, mais de 30 anos atrás, lembro-me bem de um debate caloroso que havia na época sobre o perfil ideal de um executivo em termos de competências: mais especialista ou mais generalista? A empresa que me recebeu como trainee tinha uma posição muito clara quando se tratava de jovens lideranças, que era a preferência por um profissional mais generalista, que fosse muito bom em alguma área de conhecimento, mas que soubesse transitar por todas as demais áreas da empresa, entendendo relações de causa e efeito, como funcionava o “organismo” como um todo e com o qual precisava estar em sintonia. Tanto é que me fez, ainda como trainee, passar por todas as áreas, divisões e, mesmo depois de efetivado, por diversas áreas da empresa, seja com cargos definidos, seja em projetos com data e hora para acabarem.
Em função dessa vivência, comprei esta tese e procurei sempre não perder nenhuma oportunidade de aprender ou vivenciar coisas em áreas diferentes da que estava no momento, bem como transitar por diversos setores de negócios. Não tinha, na época, a menor noção de que um dia estaria tratando deste dilema em outra fase da carreira. Mas o fato é que, na imensa maioria da nossa jornada profissional, salvo em raras exceções, somos levados para um território de conforto e domínio no qual ficamos nos aprofundando e buscando fazer a diferença. Isso nos dá uma chancela de especialista em alguma coisa e longe de mim dizer que isso é ruim. Em uma carreira executiva, ter conhecimento profundo em uma determinada área é um belíssimo diferencial competitivo.
Entretanto, quando a carreira executiva chega ao fim ou se aproxima dele, vários caminhos se apresentam: Consultoria, Carreira acadêmica, Empreendedorismo, entre outras e, Conselho. Neste último caso – Conselho - como trata-se de uma carreira em franca expansão e cheia de oportunidades, tem atraído muitos executivos e executivas de carreira, sendo muitos deles com décadas de experiência em uma determinada área. Há, neste grupo de profissionais que se interessam pela carreira em conselho, dois tipos bem comuns: o primeiro vou chamar de “Especialista-Raiz”, aquele que acredita que fará a diferença em um conselho com a sua forte experiência em determinada área e que não faz questão de se aprofundar em outras. O segundo vou chamar de “Especialista - Lifelong Learner”, aquele que, embora tenha edificado sua carreira em uma determinada área, abre a agenda e mantém uma forte jornada de estudos sobre outras áreas de conhecimento em gestão.
A tentação de achar que o sucesso que tivemos como executivos pode ser levado, quase que como um passe mágica, para uma carreira em conselho, é muito grande e perigosa. Isso porque o jogo ali é outro e bem diferente do que estamos acostumados a jogar.
Na primeira aula do primeiro curso de formação de conselheiro que fiz, ouvi com atenção as seguintes afirmações do professor:
1) “Este curso não cobre Gaps. Às vezes, ele aponta Gaps. Descubram os seus e os trabalhem”
2) “O Conselho é o órgão de decisões colegiadas, no qual é muito importante lembrar a todo momento que temos duas orelhas e uma boca”
Como executivos, estamos acostumados a decidir. Levantamos informações, ouvimos pessoas que confiamos, mas, no final, matamos a bola no peito e decidimos. Em um conselho, o jogo é outro. A começar pelo seu papel – que não é de gestão nem de propriedade, mas de elo de ligação entre estes dois Stakeholders. Depois, pela sua missão principal – longevidade - um conselho tem que, prioritariamente, estar com os faróis levantados e olhando fortemente para o futuro. Estes dois ingredientes colocam os “Especialistas-Raiz” em um território muito perigoso, que se resume em dois riscos que podem ser “mortais”:
1) Eles correm o risco de, em uma reunião de 6h de duração, só abrirem a boca uma ou duas vezes, quando “a bola cair no seu pé bom”. Já imaginou você se posicionar e contribuir apenas por 15 minutos numa reunião de 6 horas?
2) Especialistas também erram! E se os demais membros do colegiado depositarem no “Especialista-Raiz” a confiança total de uma decisão e ele errar? Olha o tamanho do dano que pode ser causado à empresa e, nem se fala, à sua carreira como conselheiro!
Por mais simples e óbvio que possa parecer, a verdade nua e crua é que conselho não é lugar para “Especialista-Raiz”. Conselho é lugar para qualquer um que possa dar contribuições efetivas nos 4 pilares do direcionamento estratégico: Estratégia de Negócios, Pessoas e Cultura, Econômico-financeiro e Tecnologia. Transitar entre estes temas é ingrediente básico para se ter relevância em uma cadeira de conselho.
É óbvio que sempre haverá um mandato, ou seja, no qual, pela nossa experiência, daremos contribuições mais profundas e relevantes, mas nunca devemos nos propor a ser a única voz dona da verdade naquele colegiado no tema em que dominamos. Também podemos (e devemos) “emprestar” a nossa forte experiência em alguma área aos comitês, nos quais temas são aprofundados e depois debatidos e decididos no conselho.
Portanto, por mais óbvio que seja este alerta, faço questão de sempre dar luz à frase da Clarice Lispector e deixar aqui essa reflexão para quem se interessa por essa maravilhosa carreira. Leve sim tudo o que sabe e domina sobre uma área ou setor para a sua jornada como conselheiro(a), mas nunca, nunca mesmo, seja um “Especialista-Raiz”. Não vai funcionar!